quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

o hóspede inquietante



A opinião publicada e radiodifundida dada em Itália (e também chegou a Portugal) a este acontecimento dramático parece-me ter-se inflamado no discurso do racismo e da xenofobia, quando na verdade a sua explicação está numa outra linha interpretativa, mais abrangente a até denotando uma razão mais perigosa, porque mais silenciosa e mais insidiosa (osa osa osa). O ataque ao pobre sem-tecto foi feito por uns jovens vindos de uma noite de copos e drogas. Agir por racismo e xenofobia significa atacar o emigrante porque ele é estrangeiro, mas aqui parece-me que ele foi atacado simplesmente porque ele é vulnerável. Lendo o que a investigação tem determinado, tudo leva a crer num mero impulso do momento. “Queríamos apenas divertirmo-nos um pouco e dar um final excitante a nossa noite”, dizem eles. Ora o que aqui actua não é ódio racial ou descriminação, porque não há essa intenção explícita no ataque. Acontece que o ataque é uma consequência da sua condição de emigrante, que a vida deixou desamparado e vulnerável, mas para o ataque ser xenófobo a sua nacionalidade estrangeira teria de ser a causa do evento.
Os agressores agiram sobre o vulnerável (que também podia ser italiano) e não sobre o emigrante. O que está na base deste e de outros episódios, e por aqui todos os dias é uma mão-cheia de homicídios absurdos e violações, é… o Hóspede Inquietante, expressão com a qual Nietzsche apelidou o niilismo, a total ausência de valores. É o fazer tudo como se tudo se anulasse no próprio momento em que acontece, porque a nada esses jovens tem que responder, a nada tem que obedecer, a começar pela sua própria consciência moral (discorso da rompipalle, seguramente). Esses zombies charrados deambulam pelas cidades sem respeito a nada a não ser a um hedonismo vazio e autodestrutivo, e daí as suas acções violentas terem uma explicação mais próxima da desorientação psíquica que da desagregação das estruturas sociais, ainda que, admito, esta exista e potencie em grande medida a persistência de uma desorientação moral. O que está na base de eventuais reais actos de racismo e xenofobia é portanto esta instalação de um hóspede silencioso e invasivo, que desencadeia violência racista, mas que tem uma causa que, essa sim, deve ser combatida, pois a sua anulação tem consequências positivas mais abrangentes.
Em Portugal a situação não é nem melhor nem diferente. Seria muito importante, julgo, traduzir este livro de Umberto Galimberti, que alcançou um notável sucesso em Itália e que explica como este desmoronamento dos valores morais está na base de uma letargia existencial capaz de provocar acções deste tipo por diversão, ao mesmo tempo que a maioria de nós encolhe os ombros depois de uma indignação momentânea.

Este livro é especificamente endereçado aos jovens, e o discurso público normalmente dirige aos jovens a acusação de desapego a moralidade e ao respeito. Mas eu penso que esta é uma concentração errada da questão num grupo que apenas tem mais energia e mais tempo para levar a efeito estas acções estridentes. Na verdade este esvaziamento total dos valores morais e éticos paira sobre todo o corpo social e, aquilo que na juventude é ímpeto e violência, nas outras idades é cooperante indiferença, passividade, medo e individualismo.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009




Prescisamente porque já tudo foi dito e já tudo foi inventado é que é possível ainda criar alguma coisa. A essência da criação é a reinvenção, é a remodelação imprevista. Todos os objectos retêem as suas possibilidades futuras, que esperam um golpe de recriação humana. Aproximar-se hermenêuticamente de um objecto (cadeira, ideia, poema, montanha) pode extrair desde a potencialidade resídua mais ínfima, tornando-o por momentos diferente apenas ao nosso olhar mais subjectivo e privado, mas pode também arrancar ao objecto a sua determinação mais substancial, transformando definitivamente o olhar da humanidade e despojando o objecto de uma essência que se julgava inatacável mas que era afinal provisória. Exemplo desta desconstrução violenta são, por exemplo, as famosas obras de Duchamp.