segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Anos-Kubler

Nicola Poussin, Autoretrato, 1650, Louvre.

Estamos habituados a conferir ao tempo uma representação linear, supondo-o de acordo estrito com o mundo da matéria, isto é, com um princípio, meio e fim. Podemos chamar a esta concepção uma concepção empírica do tempo, porque ela decorre da observação directa da sua acção sobre os corpos. Quando os filósofos se interrogam sobre a "natureza" do tempo, eles procuram dar-lhe uma forma, tentando aprisioná-lo dentro de um conceito para que daí se retirem as conclusões respeitantes ao problema ou conjunto de problemas em causa. A "forma do tempo" é portanto uma das grandes questões da história do pensamento humano e continua a ser debatida, sem que, naturalmente, se ignorem os imensos conhecimentos científicos que entretanto ajudaram a perceber um pouco melhor esta dimensão. Kant intuiu imediatamente que o tempo (e também o espaço) tem de jogar um papel originário na formação de uma teoria do conhecimento, e dada esta imprescindibilidade, o tempo foi nomeado forma apriori da sensibilidade. Ele é, pois, uma condição necessária para que, desde logo, hajam percepções.

Na Crítica da Razão Pura, Kant descreve-nos em concreto que tipo de forma tem o tempo para ele, na Estética Transcendental primeiro, e depois na Analítica. Tanto a demonstração do tempo como condição a priori da sensibilidade como, mais tarde no seu percurso, as suas ideias teleológicas sobre a perfectibilidade dos seres racionais cobrem a hipótese de se atribuir a Kant uma concepção necessariamente linear do tempo, principalmente através da categoria da causalidade. Temos então, simultaneamente, uma representação clássica do tempo que nos é dada, e legitimamente, pela nossa imediata experiencia, e temos depois, de modo complementar com a linearidade, uma representação subjectiva de linhagem kantiana. Esta subjectividade não significa de todo uma dependencia que o tempo tenha em relação a uma acção do sujeito, até porque, como disse, o tempo é uma condição apriori. Ela é subjectiva apenas no sentido em que o sujeito epistémico só o é dentro da temporalidade.

Se atendermos a forma do tempo de impressão linear-kantiana e a transferirmos ao modo como compreendemos a temporalidade dos objectos do mundo, percebemos como e porque são os conceitos de "novo" ou de "antiguidade" que imperam na nossa avaliação da temporalidade das coisas. No entanto, esta juízo aplica-se apenas aos síngulos objectos, tomados na individualidade que os submete a lei do tempo. Esta lei determina que os objectos sejam novos, quando estes apresentam uma idade recente, situando-se ainda na proximidade temporal da sua produção, ou antigos, quando apresentam sinais de uma permanencia alargada no mundo das "coisas". É claro que o juízo de idade que se atribui a um objecto está dependente das suas específicas características: em primeiro lugar o material de que é feito, mas também o tipo de uso que dele se faz ou a existencia ou não de cuidados de manutenção.

Uma obra de grande importancia para a reavaliação contemporanea da arte e da história de arte introduz uma perspectiva muito original dentro desta indagação que procura uma forma a dar ao tempo. Uma obra intitulada, com toda a propriedade, The Shape of Time, do historiador de arte e filósofo norte-americano George Kubler (1912-1996) permite reavaliar o princípio linear-kantiano do ponto de vista da história dos objectos, e particularmente da história dos objectos artísticos. A teoria de Kubler opera uma abordagem as tres dimensões temporais de modo a fundí-las numa teoria que reavalia a posição dos objectos artísticos no interior do tempo. Não se trata de uma denúncia da inexactidão ou da falsidade da partição temporal nas suas dimensões (passado, presente e futuro). Tal como Descartes precisava que enquanto colocamos tudo em dúvida não podemos deixar de acreditar que o mundo continua a existir, também Kubler reconhece que anulando o passado tudo deixa de fazer sentido. Ele continuará a servir-nos de Norte temporal, regulando a nossa acção no interior do tempo e do nosso olhar sobre o mundo.

Aferimos o reino do passado a partir dos sinais que os objectos longínquos deixaram até ao nosso tempo. Esta captação de sinais permite reorganizar a história dos objectos artísticos ou não-artísticos: todos os artefactos humanos estão presentes no tempo de um modo não-linear, ou seja, a sua existência é medida em termos que transcendem a sua duração. Para Kubler, cada artefacto humano é, em termos simples, uma solução dada num determinado momento a uma questão de utilidade prática ou espiritual. No momento da sua criação, um carro de bois ou uma pintura a óleo promovem uma solução a uma necessidade humana. Essa necessidade pode ser bem definível, como no caso do carro de bois, ou pode ser mais vaga mas não por isso menos necessária, como no caso da pintura Alegoria da Prudência, de Tiziano. A revolução desta teoria está no modo como se considera cada objecto não algo definitivo em si mesmo, e portanto não algo que se situa no tempo em função da sua duração individual, mas como algo de ligado ao passado e ao futuro, encandeando-se a todas as obras que procederam a uma tentativa de resolução do mesmo problema, em tempos muito diferentes.

Esta nova temporalidade dos objectos tem o nome de idade sistemática. Cada objecto tem a sua própria idade sistemática, podendo ligar-se aos seus antecessores e impulsionando os seus sucessores num ritmo único. O ritmo de mudança das formas que pretendem solucionar um problema depende muito da natureza do problema, mas também das possibilidades materiais do artesão no momento em que a necessidade de criação o prende. Assim se inaugura uma nova forma de encarar os objectos e o tempo, com toda uma série de questões subordinadas. Por exemplo, existe espaço para a genialidade, uma espécie de creatio ex nihilo, neste contexto?