domingo, 30 de setembro de 2007

misplaced




Ao regressar de um longo almoço, viajo no autocarro com alguns dos convivas. Um deles, um angolano quarentão que está aqui a “estudar”, revela mau beber e importuna alguns passageiros, tentando abraçá-los e metendo conversa em tudo menos italiano, porque não o aprendeu, com toda a gente. De repente, deixando a situação entregue aos amigos íntimos, reparo por entre sovacos que descemos a grande velocidade a Via Veneto. Não houve como não lembrar-me imediatamente de La Dolce Vita, por uma enorme, profundíssima antonomásia não literária, mas factual. Enquanto Mastroianni, ali mesmo, usava a má educação com glamour, o meu vizinho demonstrava que a ignorância total e transversal (da falta de respeito pelos outros ao cinema) é fundamental para não nos sabermos enquadrar nos nossos tempos. É possível usar vícios com charme, mas para isso há que representar-se como um actor no seu tempo. Se somos ignorantes tout court, não há nada que nos salve nem a nós, nem aos olhos dos outros.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Spencer Tunick, Melbourne


Muitas vezes, quotidianamente até, dou por mim a exercer esta crença, disfarçada de retórica: “O que é que eles queriam, afinal”? Os cidadãos, os políticos, os treinadores, enfim, todas as pessoas com opinião. O que queriam, afinal? Outro mundo? Outro modo de ser? Outra possibilidade para o Ser?
Nós estamos tão imersos em vozes, em ruído, que parece impossível ouvirmo-nos uns aos outros. Ainda mais difícil é encontrar gente que se contenta com o silêncio. Mas só no silêncio se entende que o tráfego caótico, imundo, de vozes é o que há, apesar do que elas dizem, propõem, discutem. Elas são o que há, e se há algo a mudar, o que duvido, é apenas o volume. Se intercedo por algo, é por um fade out geral.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

insónia

Nós não nos damos à verdade por medo de sermos "descobertos". Mas a verdade também não se dá a nós quando não há razões para ter esses medos. Continuamos a velá-la, ansiando por um momento de pura contemplação, sem retorno. Ambos entricheirados, nós por excesso de visão, e a verdade por excesso de "cegueira".

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Eros e Tanatos

Bérangère Haegy, Eros-Thanatos



Dois deuses inseparáveis, à imagem destes dois humanos. Talvez não resista à tentação de romantizar, mas há ali, pelo menos, o momento da decisão, e o momento da concretização, o momento em que as duas divindades se unem e se sublimam.

Teoria dos conjuntos



À frente da minha casa há um Centro Sociale. Estes lugares são comuns aqui em Itália, especialmente de Roma para baixo. São basicamente associações culturais que desenvolvem actividades como edição independente de livros, discussões ou concertos. Alguns, como este, têm também espaços para actividades desportivas (futebol, ginástica, aulas de capoeira, ginásio). A maior parte dos seus utilizadores são jovens, mas também há os menos jovens, e, também, estas associações desempenham um papel muito importante na dinamização dos bairros periféricos onde por norma se inserem.
Tudo isto enrolado e recheado de política, como está bom de ver. É um reduto para esquerdistas em geral, comunistas em particular.
Recentemente, passei por lá, para almoçar (excelente pasta e não só, a preços simbólicos!), a primeira vez fui sozinho e na segunda fui com um grupo de recém-conhecidos. Nas duas visitas foi possível observar diferenças que se apresentam quando o ambiente "primário" onde me encontrava foi diferente (o caso em que fui sozinho / o caso em que fui acompanhado) enquanto o ambiente secundário se manteve (o centro social, e respectiva comunidade). Assim, quando fui sozinho senti-me imediatamente olhado de lado, suspeito e provavelmente tido como ameaçador à congeminação secreta de uma qualquer inútil demonstração que por lá se organizava (discutiam-se layouts de panfletos, slogans e lutava-se por lideranças). Na minha anonimidade, nem sequer denunciadamente estrangeiro e absolutamente desconhecido, e no meio de tal reunião, comi à pressa as orecchiette e fui-me embora dali, maldizendo esta mania da subversão, e ainda mais convencido da cegueira e da auto-alienação a que estes grupinhos se prosternam.
Mas esta dificuldade em um grupo aceitar um estranho que ainda por cima parece estranho é muito compreensível. Afinal, qualquer grupo depende da sua identidade e a desconfiança em relação ao estranho é essencial para manter e ir preservando essa mesma identidade. Emocionalmente, marcou-me negativamente, mas não tanto que racionalmente não se possa aceitar tal comportamento.
Já quando fui com os meus novos amiguinhos, fiquei bem mais perturbado pela forma como as pessoas da minha mesa, todos eles estudantes de doutoramento em áreas científicas, não conseguem perceber, ter a sensibilidade, capacidade de adaptação e, finalmente, respeito, pelo ambiente e pelo lugar onde estão. Para além de toda a fantochada típica de cortejamentos com a subtileza de um terramoto, coisas de quem passa a vida fechado em laboratórios a mexer em ratinhos, foram (fomos, enquanto grupo) incapazes de perceber os valores que se esperam sejam partilhados por todos os que entram naquele espaço, que justamente pretende ser de partilha e entreajuda, onde os cozinheiros são as mesmas pessoas que chegam às mesas a perguntar se temos mortalhas, em que quando as pessoas se levantam pegam nos pratos e nos talheres e levam-nos para dentro. No meu grupo ninguém o fez, e as pessoas basicamente usaram o lugar como se de um restaurante se tratasse.
É um espaço aberto, no sentido em que qualquer um pode entrar. É politizado, sim senhor, mas a política nada tem a ver com o respeito em relação ao outro, e principalmente ao outro que nos acolhe e que cozinha para nós (os preços são, realmente, muito baixos, demasiado baixos para que haja um lucro minimamente significativo). Esta falta de sensibilidade é-me desconfortável, e significa falta de atenção para com os outros. Aquilo não é um restaurante, não se pode utilizar como um. É um espaço de difusão de cultura com cujas bases podemos ou não concordar, mas é um espaço estruturado por uma certa humildade do oferecer. E é preciso ter olhos que vejam isso, e por tantas razões importantes; para se promover a própria aceitação e consequente possibilidade de bem-estar, de evolução e aprendizagem, por exemplo, ou para se ter a minha simpatia.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Untitled (No.4) [1964], Mark Rothko

E agora, que fazer? Sentar-se à secretária, andar aqui e ali a viver só em mim. É preciso sempre avançar, partir, deixar. Ler, escrever, comentar, conhecer. Eu preciso, ao invés, do esvaziamento, do nada interior tendencial, desejado e inalcançável. Não há para mim nenhum motor que não tenha marcha reversível.
O adiante que se reveza, deixemos o tempo negligenciado, e atenhamo-nos ao possível.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007



Eis a cidade na qual me reencontro. Assim, na sua indiferença que não é prepotente mas simplesmente apresentada, ela recolhe-me nas suas nuvens de poluição e nas suas multidões. Que com ela me re-encontro, tal e qual, porque quando a deixei, aqui fiquei alhures-adormecido, e agora me retomo, como se fosse um encore de um concerto não percebido.