segunda-feira, 29 de outubro de 2007

a estética do fazer filosofia

Paolo Uccello, San Giorgio e il Drago



Porque há toda uma ontologia, um pensar inconstante e inconsciente por detrás da criação, antes de a obra chegar ao mundo.

Porque, mesmo ao nível da intenção, da consciência, da vontade, a escritura filosófica não é inocente e obedece a um certo incarnar o espírito do filósofo.

Porque dar o próprio assentimento ao que se escreve é talvez uma prerrogativa necessária para que o que se escreve surja enquanto obra. Ou seja para além dos aspectos que colocam o criador como um mero intermediário, ele não fica na penumbra e todo o produzir é atravessado por uma luta entre o criador e a obra. Há sempre qualquer coisa de agressivo no fazer artístico, e no fazer filosófico. Há sempre uma vontade de assenhorar-se de tudo o que é condição, natureza e epifania na obra de arte.

Porque a Estética, pelo menos desde Husserl e a fenomenologia, já saiu do circuito dentro do qual se entende a Arte na sua forma clássica, isto é, ou como reprodução de elementos do mundo, ou como relação essencial com o mundo do ponto de vista da representação das suas formas. Ela intromete-se nos núcleos duros da Ética, da Hermenêutica, da Política, até da Religião.

Onde ganha a filosofia a sua identidade? Afinal, o que é a filosofia? É este o projecto de uma estética do fazer filosófico…


sexta-feira, 26 de outubro de 2007

a rectidão da água; o crescimento

a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora; são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas, como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para o desalinho branco das palavras,altas asas
as de nuvens no clarão do céu em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais
ausente de recados e colheitas,em assustado bosque, em sombra
clareira,
ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.

António Franco Alexandre, A Pequena Face



Porque é que se tem que explicar a poesia? Esta poesia que se escreve agora (como nomeá-la? minimalista, seminal, arquitectónica…)tem uma coisa interessante: é que ao lê-la já nem imagens se desenham na nossa mente. Não há mais espaço para a imaginação na poesia odierna. Ela apresenta apenas linhas, vectores, pontos de fuga. Ela inscreve numa dimensão superior à da sensibilidade humana. Foge-lhe e consegue criar uma espécie de rejeição. Parece abandonar a pretensão humana que tem toda a criação, perdendo, do ponto de vista da criação artística, a auto-referencialidade.
Interessante como ponto de fuga epistemológico, questão que é absolutamente estrangeira ao artista, que nem já intérprete é. Será, talvez, uma espécie de místico urbano, uma pitonisa dos arrabaldes, um pai-de-santo de estações de metro.
É poesia que não se lê, mas que se inala.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

rosso trevi



Aspecto da Fontana di Trevi esta sexta-feira, objecto de uma intervenção vândalo-artística de um obscuro grupo que se adjectiva "futurista". Nada de danos permanentes à histórica fonte. Apenas um aspecto interessante, e muita surpresa. É bom saber que ainda há quem prepare "manifestos", que ainda há quem queira acordar o mundo através da arte, ou pelo menos intervindo ao nível do "conceito". Para quando o verde ou o azul?

sábado, 20 de outubro de 2007

inteligentsia

Essa classe difusa e heterogénea que são os "intelectuais". Nos últimos dois dias, assisti a um convénio sobre o tema. Versou-se sobre a definição deste termo, sobre as relações entre os poderes políticos e os intelectuais, sobre o papel dos intelectuais na era pós-moderna, na qual parte do espaço outrora ocupado pelos eruditos verdadeiramente enciclopédicos, ou seja, apaixonados pela investigação sobre a verdade, é agora ocupado pelos intelectuais de sofá, que debitam a partir de um estúdio de televisão as suas sentenças num exercício não já de saber, mas de retórica e estilo.
Dos participantes, gostei de Giuseppe Patella, professor em Roma, que nos ofereceu uma comunicação objectiva no que diz respeito aos desafios modernos para a classe intelectual, tendo em conta a era tecnológica e a sobranceria pós-moderna que professa um ultra-relativismo auto-castrador para a própria inteligência, para a criatividade, para os processos mentais.
Excelente também o apontamento histórico da minha colega Amalia Verzola, que nos falou da corrente situacionista, em particular de Toni Arno, um dos fundadores da revista "Errata", cujo projecto passava por focar o quotidiano como o lugar da revolução "não-política", ou seja, uma tomada de posição não institucionalizada como movimento de ideologia e portanto tendente a renegar a lógica do poder que assiste ao espaço onde se estabelce a política, espaço esse que compreende não só o exercício do poder mas também metaboliza a resistência que lhe é feita.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

cómico

Anibale Carraci, Assunzione della Vergine


Ironia e riso cínico, ainda que simpático. São inseparáveis. Num apontamento irónico há sempre (ainda bem) um sobrelevar-se sobre o mundo. E portanto sempre um destaque em relação ao comum e ao mortal, e ao comum mortal.
O cinismo histórico, aquele da escola grega, é um salto para a frente em relação ao cepticismo. O cepticismo, que diz não crer em nada e que nada se pode saber, não tinha ainda um modo “ético”, faltava-lhe um modo de orientar o comportamento, faltava um modo de estar céptico. É o cinismo que o providencia. E, de facto, é aos cépticos que o cinismo assenta. Quem crê em verdades e por elas luta com todas as armas que possui nunca é cínico. Mas quem vê trincheiras profundas entre nós e o mundo sabe que quase todo o esforço é inútil, e por isso recreia-se com a ironia, o cinismo, o sorriso de superioridade sapiente.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

involtini de sageza

Adriano Baptista, American Holiday 3


O que é indomável na vida é que ela nos consegue sempre surpreender. Mas a coisa não acaba, nem começa aqui. A vida consegue surpreender principalmente quando não consegue surpreender, quando as esperanças se retraem para deixar avançar o bom velho mundo. Mas mais surpreendente ainda é pensar que há que esperar um brave new world e que as nossas esperanças se possam dirigir a um outro mundo. Não, estamos e estaremos aqui, e só há que ter esperança que o velho continue o novo (o novo é uma coisa muito antiga).
Deponho toda a minha esperança no surgimento do Sol, amanhã de manhã. As expectativas são importantes, mas apenas se usadas com parcimónia, reflectindo uma harmonia que advém de se adquirir o mesmo ritmo que a natureza, dançando a vida interior. Esperar bem e pouco é conseguir, mas esperar demais é trair.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

uma visitação aos livros

Escritas possíveis, e reais: escrever para dentro, para dar ao mundo apenas aquilo que grita no interior, correndo o risco de este grito encontrar a surdez do mundo. Escrever de dentro, porque é a única forma de honestidade possível na escrita, e aquela que mais se apoia na esperança de que what goes around comes around.

Escrita preguiçosa: escrever porque se não tem vontade nenhuma de escrever.

sábado, 6 de outubro de 2007

questões de memória

Se nós fôssemos ter a um blog cujos textos, sem o podermos saber, tinham sido escritos por nós, reconhecê-lo-íamos? (sim, reconhecê-lo-íamos?)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007



Leio Henry Miller e Shakespear, contemporaneamente. Muito mais do que alternar entre estas duas “disciplinas”, fico indeciso entre uma e outra. E porque a literatura talvez seja maior do que o mundo, pelo menos em dias absolutamente normais, é esta alternância que rege o meu ir vivendo. De um lado Shakespeare (Cornelia), do outro a devassidão das americanas. De um lado quem seja amarrado a paus para humilhação pública, por mal entendidos e por prevaricação à honra, e do outro a prevaricação como honra.
Tanto um como outro (eis a incontornável síntese, mãe de todos os filósofos!), a transgressão como forma de arte, a criação como respiração.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

e preso por não ter...




Agradou-me muito a atitude de Santana Lopes, como, aliás, parece ter agradado a todos. Votei no PSD nas últimas legislativas porque penso, ainda hoje, que a incompetência de Santana Lopes foi em grande medida (não digo a sua totalidade, héllas!) uma invenção da comunicação social, empolada por um efeito "arrastão", uma acção concertada mas talvez semi-consciente, própria de uma estrutura que estabelece as suas dinâmicas para lá dos agentes que a compõem (sim, Foucault). Por isso o meu voto foi de protesto, até porque num caso destes a acção do "poder comunicação social" só pode conduzir a uma vitória da ignorância sobre a autonomia do pensamento individual, o que aliás foi o caso. O resquício disso é que todos parecem ter de se justificar "pessoalmente" quando agora defendem esta atitude de Santana na Sic Notícias.


Santana, tal como Bush e Aznar, talvez tenha cometido o pecado de em algumas situações permitir que a sua auto-percepção enquanto "agente guiado por um sentido histórico de responsabilidade", tenha percolado para o domínio público. Mas o pecado é a falta de recato, não esta percepção, que na minha minha opinião se justifica e portanto se torna uma condição. E desta vez também foi esse sentido de responsabilidade, para o país mas talvez principalmente para consigo mesmo, que o levou a abandonar a entrevista . A virtude de Santana foi, claro está, levar por diante as suas convicções. Ser inteiro.

É tudo isto, uma questão de deterioração pública e continuada da imagem de uma pessoa que agora, trocando muitas voltas, se mostra íntegra, que deve fazer confusão a pessoas como Francisco José Viegas, que não consegue ver um acto virtuoso auto-subsistente e auto-justificativo, e declara que é bonito e tal, mas é também uma jogada premeditada! Preso por ter cão...