domingo, 23 de dezembro de 2007

praia dos cães

Imagem: fonte


Lisboa, regresso. Uma atmosfera decididamente natalícia paira sobre a baixa. Consigo recuperar a boa disposição mesmo depois de constatar mais uma vez a vergonha que é o nosso aeroporto.


Com temperatura amena, mergulho na luz artificial da Fnac. Compro, para presentear os meus pais, O Rio das Flores e A Balada da Praia dos Cães. Depois, pergunto como é possível o mercado editorial literalmente roubar o consumidor de forma tão descarada? Os livros que vale a pena ler, que pertencem à cultura nacional ou internacional, são enrolados numa capa que transluz, com o título numas letras em relevo, impressos num papel canelado ou lá o que é, e eis que o preço quase nunca é inferior a 15-20 euros. Em Itália, por exemplo, todos os grandes livros têm a sua edição paperback, e ninguém deixa de ler Calvino ou Pavese, porque essas edições são feitas para a leitura, não para enfeitar as estantes das salas dos jovens casais minimalistas. Por 7 ou 8 euros (e muitas vezes menos) levamos para casa Bulgakov ou Dostoievski. Aqui pagamos 25 e levamos para casa um livro pesadão, com umas margens enormes e desproporcionadas, difícil de encaixar na mala...


Mas enfim, bom Natal a todos.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

preço de amar cada vez mais a humanidade

Suportar cada vez menos as pessoas.

de motard a evangelista

Vale a pena ler este texto de Keith Burgess-Jackson sobre a revolução interior de um seu ex-aluno.

Antonio Canova, Vénus e Psiche


Noto que na blogoesfera mainstream não há lugar para o estilo confessional. Que deixar escapar uma lamechice é visto como o abandono da forma, ou seja, do estilo. Não é já a substância (essa instância metafísica e demodé), mas o estilo, que constrói a identidade. Ceder a um arrebatamento emocional significa anular a capacidade de nos diferenciarmos pela qual buscamos com ardor um estilo próprio. A confissão de um grande sentimento é a confissão de que encontrámos nessa grande sensação a anulação da identidade, da diferenciação. No ponto máximo do sentimento toda a diferença se anula, toda a identidade se dilui. No ponto máximo do sentimento se encontra o ponto zero do poseur. O paradoxo da vida joga-se aqui. Generalizo porque, não certamente por acaso, penso que é também é este o maior paradoxo da literatura.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

quatro virgens ofendidas

O prémio vai para Daniel Dennet:

"Well, I want religion to be treated as the pharmaceutical industry, or the oil industry!"


Falta pensar o fenómeno religioso, em vez da religião. Christopher Hitchens é o mais inteligente, porque é o que mostra mais dúvidas. A certa altura, pergunta se o que eles querem e desejam é mesmo acabar com a religião. Não há resposta satisfatória. Ficam-se, a partir daí, pela política.

teste aqui a sua inteligência.

domingo, 16 de dezembro de 2007

natal

Foto daqui


Correr, entrar, escolher, pegar, comprar, embrulhar, bancomat, massas incógnitas, casacos com pelos.

Entrar, furar, respirar.

Sair, arrepio, pensar no resto do dia. Chegar, descalçar, ligar, ouvir, olhar o lá fora.

Acomodar, planejar, espreguiçar, pensar em começar, não começar. Jantar, falar, rir, tentar.

Ficar sozinho e gostar, telefonar...

Ler e escrever e fotografar o dia, a vontade de lamentar e queixar, o impor a mudança mas ficar.

É bom e sombrio o natal das horas, que há a todo o minuto, materializando-se por esta altura.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

log

Duplicar a vida através da escrita. Escrever é criar um interstício, uma trincheira entre o nada dos dias mudos e o mistério que se guarda onde as palavras não chegam. Mas será que esse destino da escrita é completo pelo acto mesmo de escrever, ou esse é antes o preenchimento de um não-lugar que é determinação real, pertencente ao próprio mundo, sem nele se situar como topos? É a escrita criadora de lugares, ou de paisagens?

domingo, 25 de novembro de 2007

e como é roma? e como é londres? e como é são paulo?


Roman Holiday é um filme que me despertou imediatamente o interesse de voltar a Roma. À Roma Cidade Eterna, longe de onde na verdade habito. Uma grande cidade mostra-se apenas no interior de quem sabe que já não se pode concentrar uma metrópole numa descrição linguística, numa definição. É a sua dispersão que a define, mas isso é incomunicável, é matéria para ser digerida apenas pela individualidade que se abre a esta impossibilidade de comunicação, capaz de interiorizar o paradoxo e a evidência da coexistência dos contrários.
E a beleza, esta realmente inominável, de Audrey Hepburn...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

toque de midas

Antonello da Messina, São Gerónimo no seu estúdio


O trabalho do tradutor poderia ser descrito como um escrever por trás de si próprio. Se é ele que faz de mediador, de canal, entre uma língua e outra, é também a única entidade possível entre as formas linguísticas que ocupam o espaço textual. Portanto o tradutor é um escritor esvaziado do acto criativo, embora o seu trabalho final adquira uma modalidade única (original) pelo facto de que é ele o único ser envolvido que é dotado de faculdades sensitivas . Ao longo de todo o processo foi ele o único que contactou com as duas margens do mesmo “texto”. Foi ele que viu, previu e fez ver, na solidão de quem tem o silêncio do papel à sua frente.


O tradutor é, ainda, a única possibilidade de humanidade entre o mesmo texto em diferentes línguas. Na verdade, um texto é uma obra cuspida para o mundo, que assume um carácter definitivo de objecto passível de ser contactado. Há, mesmo nessa abertura de ser objecto deixado à sua fruição, qualquer coisa de acabado, de feito, de “concretizando um plano misterioso”. Só o verter da obra para outra modalidade (traduzindo-a) é passível de fazer com que algo absolutamente intocável e inegável como é a obra na sua implacável aparição sobre a terra, possa ainda ser manchada pela deformação humana.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

ressoa longe

um qualquer "não metas o bodelho onde não és chamado". E agora? onde foi que meti o bodelho?
São memórias destas que me garantem uma identidade. São elas que unem as pontas do meu passado e do meu futuro. É a segurança do mundo e a última réstea de conforto. O "bodelho". "Onde não sou chamado". Longínquo, mas meu...
Já agora, eu gosto muito de meter o dito cujo, lá onde a minha comparência não foi requerida.

sábado, 10 de novembro de 2007

Klimt, O Beijo

O que mais me tem vindo a insidiar, e as coisas que insidiam, insidiam silenciosamente, mostrando a razão pela qual estes dois conceitos casam tão bem, é a falta de segurança generalizada das pessoas.
Falo disto porque, obviamente, me coloco do lado daqueles que adquiriram uma força de viver tal de poder falar, com confiança, de um tema que, inevitavelmente, acabará por rebaixar a maioria dos seres humanos e que se abre com muitíssima facilidade à crítica moralista, às acusações de arrogância e presunção (não aqui, mas no contacto real com seres humanos), próprias de quem só consegue arranjar porto seguro na diminuição do carácter superior de alguns seres, incluindo-os na esfera da hipócrita moral “baixa”, aquela que exclui ou inclui a partir de critérios que, de forma mais ou menos directa, se relacionam com aspectos de mera “visibilidade”, de interesses pessoais mesquinhos e com desígnios materiais, inessenciais, de “estilo” ou de imagem.
Certamente visível a poucos mas a esses por demais evidente, é esta abrangente falta de amizade pela verdade que se mostra em tudo o que é agregação. E não me digam que os comportamentos são todos justificados por dinâmicas estruturais dos grupos, dos ambientes, etc. É, claro, necessário jogar esse jogo, da integração, da imagem e tudo o resto, mas é no conteúdo, não na forma, que a parvoíce e a hipocrisia se torna clara. Nas conversas. No que se diz, no que se faz e principalmente no como se faz. Falta uma subtileza consapevole. Um destaque estético, que nos atire para a cena teatral do mundo com o mesmo impulso que nos faz a ela retrairmo-nos, olhando os esgares das gargalhadas com terror e ironia, complacência e agonia.

Um beijinho, que hoje estou carente.


quinta-feira, 8 de novembro de 2007

As boas coisas não podem ser "interessantes". Não podem ser uma fruição meramente "intelectual". Têm de intrometer-se no sentir. A seriedade do pensar é uma abertura do corpo ao mundo, é um sorrir e um rir, um chorar e desesperar.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

a estética do fazer filosofia

Paolo Uccello, San Giorgio e il Drago



Porque há toda uma ontologia, um pensar inconstante e inconsciente por detrás da criação, antes de a obra chegar ao mundo.

Porque, mesmo ao nível da intenção, da consciência, da vontade, a escritura filosófica não é inocente e obedece a um certo incarnar o espírito do filósofo.

Porque dar o próprio assentimento ao que se escreve é talvez uma prerrogativa necessária para que o que se escreve surja enquanto obra. Ou seja para além dos aspectos que colocam o criador como um mero intermediário, ele não fica na penumbra e todo o produzir é atravessado por uma luta entre o criador e a obra. Há sempre qualquer coisa de agressivo no fazer artístico, e no fazer filosófico. Há sempre uma vontade de assenhorar-se de tudo o que é condição, natureza e epifania na obra de arte.

Porque a Estética, pelo menos desde Husserl e a fenomenologia, já saiu do circuito dentro do qual se entende a Arte na sua forma clássica, isto é, ou como reprodução de elementos do mundo, ou como relação essencial com o mundo do ponto de vista da representação das suas formas. Ela intromete-se nos núcleos duros da Ética, da Hermenêutica, da Política, até da Religião.

Onde ganha a filosofia a sua identidade? Afinal, o que é a filosofia? É este o projecto de uma estética do fazer filosófico…


sexta-feira, 26 de outubro de 2007

a rectidão da água; o crescimento

a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora; são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas, como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para o desalinho branco das palavras,altas asas
as de nuvens no clarão do céu em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais
ausente de recados e colheitas,em assustado bosque, em sombra
clareira,
ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.

António Franco Alexandre, A Pequena Face



Porque é que se tem que explicar a poesia? Esta poesia que se escreve agora (como nomeá-la? minimalista, seminal, arquitectónica…)tem uma coisa interessante: é que ao lê-la já nem imagens se desenham na nossa mente. Não há mais espaço para a imaginação na poesia odierna. Ela apresenta apenas linhas, vectores, pontos de fuga. Ela inscreve numa dimensão superior à da sensibilidade humana. Foge-lhe e consegue criar uma espécie de rejeição. Parece abandonar a pretensão humana que tem toda a criação, perdendo, do ponto de vista da criação artística, a auto-referencialidade.
Interessante como ponto de fuga epistemológico, questão que é absolutamente estrangeira ao artista, que nem já intérprete é. Será, talvez, uma espécie de místico urbano, uma pitonisa dos arrabaldes, um pai-de-santo de estações de metro.
É poesia que não se lê, mas que se inala.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

rosso trevi



Aspecto da Fontana di Trevi esta sexta-feira, objecto de uma intervenção vândalo-artística de um obscuro grupo que se adjectiva "futurista". Nada de danos permanentes à histórica fonte. Apenas um aspecto interessante, e muita surpresa. É bom saber que ainda há quem prepare "manifestos", que ainda há quem queira acordar o mundo através da arte, ou pelo menos intervindo ao nível do "conceito". Para quando o verde ou o azul?

sábado, 20 de outubro de 2007

inteligentsia

Essa classe difusa e heterogénea que são os "intelectuais". Nos últimos dois dias, assisti a um convénio sobre o tema. Versou-se sobre a definição deste termo, sobre as relações entre os poderes políticos e os intelectuais, sobre o papel dos intelectuais na era pós-moderna, na qual parte do espaço outrora ocupado pelos eruditos verdadeiramente enciclopédicos, ou seja, apaixonados pela investigação sobre a verdade, é agora ocupado pelos intelectuais de sofá, que debitam a partir de um estúdio de televisão as suas sentenças num exercício não já de saber, mas de retórica e estilo.
Dos participantes, gostei de Giuseppe Patella, professor em Roma, que nos ofereceu uma comunicação objectiva no que diz respeito aos desafios modernos para a classe intelectual, tendo em conta a era tecnológica e a sobranceria pós-moderna que professa um ultra-relativismo auto-castrador para a própria inteligência, para a criatividade, para os processos mentais.
Excelente também o apontamento histórico da minha colega Amalia Verzola, que nos falou da corrente situacionista, em particular de Toni Arno, um dos fundadores da revista "Errata", cujo projecto passava por focar o quotidiano como o lugar da revolução "não-política", ou seja, uma tomada de posição não institucionalizada como movimento de ideologia e portanto tendente a renegar a lógica do poder que assiste ao espaço onde se estabelce a política, espaço esse que compreende não só o exercício do poder mas também metaboliza a resistência que lhe é feita.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

cómico

Anibale Carraci, Assunzione della Vergine


Ironia e riso cínico, ainda que simpático. São inseparáveis. Num apontamento irónico há sempre (ainda bem) um sobrelevar-se sobre o mundo. E portanto sempre um destaque em relação ao comum e ao mortal, e ao comum mortal.
O cinismo histórico, aquele da escola grega, é um salto para a frente em relação ao cepticismo. O cepticismo, que diz não crer em nada e que nada se pode saber, não tinha ainda um modo “ético”, faltava-lhe um modo de orientar o comportamento, faltava um modo de estar céptico. É o cinismo que o providencia. E, de facto, é aos cépticos que o cinismo assenta. Quem crê em verdades e por elas luta com todas as armas que possui nunca é cínico. Mas quem vê trincheiras profundas entre nós e o mundo sabe que quase todo o esforço é inútil, e por isso recreia-se com a ironia, o cinismo, o sorriso de superioridade sapiente.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

involtini de sageza

Adriano Baptista, American Holiday 3


O que é indomável na vida é que ela nos consegue sempre surpreender. Mas a coisa não acaba, nem começa aqui. A vida consegue surpreender principalmente quando não consegue surpreender, quando as esperanças se retraem para deixar avançar o bom velho mundo. Mas mais surpreendente ainda é pensar que há que esperar um brave new world e que as nossas esperanças se possam dirigir a um outro mundo. Não, estamos e estaremos aqui, e só há que ter esperança que o velho continue o novo (o novo é uma coisa muito antiga).
Deponho toda a minha esperança no surgimento do Sol, amanhã de manhã. As expectativas são importantes, mas apenas se usadas com parcimónia, reflectindo uma harmonia que advém de se adquirir o mesmo ritmo que a natureza, dançando a vida interior. Esperar bem e pouco é conseguir, mas esperar demais é trair.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

uma visitação aos livros

Escritas possíveis, e reais: escrever para dentro, para dar ao mundo apenas aquilo que grita no interior, correndo o risco de este grito encontrar a surdez do mundo. Escrever de dentro, porque é a única forma de honestidade possível na escrita, e aquela que mais se apoia na esperança de que what goes around comes around.

Escrita preguiçosa: escrever porque se não tem vontade nenhuma de escrever.

sábado, 6 de outubro de 2007

questões de memória

Se nós fôssemos ter a um blog cujos textos, sem o podermos saber, tinham sido escritos por nós, reconhecê-lo-íamos? (sim, reconhecê-lo-íamos?)

quinta-feira, 4 de outubro de 2007



Leio Henry Miller e Shakespear, contemporaneamente. Muito mais do que alternar entre estas duas “disciplinas”, fico indeciso entre uma e outra. E porque a literatura talvez seja maior do que o mundo, pelo menos em dias absolutamente normais, é esta alternância que rege o meu ir vivendo. De um lado Shakespeare (Cornelia), do outro a devassidão das americanas. De um lado quem seja amarrado a paus para humilhação pública, por mal entendidos e por prevaricação à honra, e do outro a prevaricação como honra.
Tanto um como outro (eis a incontornável síntese, mãe de todos os filósofos!), a transgressão como forma de arte, a criação como respiração.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

e preso por não ter...




Agradou-me muito a atitude de Santana Lopes, como, aliás, parece ter agradado a todos. Votei no PSD nas últimas legislativas porque penso, ainda hoje, que a incompetência de Santana Lopes foi em grande medida (não digo a sua totalidade, héllas!) uma invenção da comunicação social, empolada por um efeito "arrastão", uma acção concertada mas talvez semi-consciente, própria de uma estrutura que estabelece as suas dinâmicas para lá dos agentes que a compõem (sim, Foucault). Por isso o meu voto foi de protesto, até porque num caso destes a acção do "poder comunicação social" só pode conduzir a uma vitória da ignorância sobre a autonomia do pensamento individual, o que aliás foi o caso. O resquício disso é que todos parecem ter de se justificar "pessoalmente" quando agora defendem esta atitude de Santana na Sic Notícias.


Santana, tal como Bush e Aznar, talvez tenha cometido o pecado de em algumas situações permitir que a sua auto-percepção enquanto "agente guiado por um sentido histórico de responsabilidade", tenha percolado para o domínio público. Mas o pecado é a falta de recato, não esta percepção, que na minha minha opinião se justifica e portanto se torna uma condição. E desta vez também foi esse sentido de responsabilidade, para o país mas talvez principalmente para consigo mesmo, que o levou a abandonar a entrevista . A virtude de Santana foi, claro está, levar por diante as suas convicções. Ser inteiro.

É tudo isto, uma questão de deterioração pública e continuada da imagem de uma pessoa que agora, trocando muitas voltas, se mostra íntegra, que deve fazer confusão a pessoas como Francisco José Viegas, que não consegue ver um acto virtuoso auto-subsistente e auto-justificativo, e declara que é bonito e tal, mas é também uma jogada premeditada! Preso por ter cão...

domingo, 30 de setembro de 2007

misplaced




Ao regressar de um longo almoço, viajo no autocarro com alguns dos convivas. Um deles, um angolano quarentão que está aqui a “estudar”, revela mau beber e importuna alguns passageiros, tentando abraçá-los e metendo conversa em tudo menos italiano, porque não o aprendeu, com toda a gente. De repente, deixando a situação entregue aos amigos íntimos, reparo por entre sovacos que descemos a grande velocidade a Via Veneto. Não houve como não lembrar-me imediatamente de La Dolce Vita, por uma enorme, profundíssima antonomásia não literária, mas factual. Enquanto Mastroianni, ali mesmo, usava a má educação com glamour, o meu vizinho demonstrava que a ignorância total e transversal (da falta de respeito pelos outros ao cinema) é fundamental para não nos sabermos enquadrar nos nossos tempos. É possível usar vícios com charme, mas para isso há que representar-se como um actor no seu tempo. Se somos ignorantes tout court, não há nada que nos salve nem a nós, nem aos olhos dos outros.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Spencer Tunick, Melbourne


Muitas vezes, quotidianamente até, dou por mim a exercer esta crença, disfarçada de retórica: “O que é que eles queriam, afinal”? Os cidadãos, os políticos, os treinadores, enfim, todas as pessoas com opinião. O que queriam, afinal? Outro mundo? Outro modo de ser? Outra possibilidade para o Ser?
Nós estamos tão imersos em vozes, em ruído, que parece impossível ouvirmo-nos uns aos outros. Ainda mais difícil é encontrar gente que se contenta com o silêncio. Mas só no silêncio se entende que o tráfego caótico, imundo, de vozes é o que há, apesar do que elas dizem, propõem, discutem. Elas são o que há, e se há algo a mudar, o que duvido, é apenas o volume. Se intercedo por algo, é por um fade out geral.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

insónia

Nós não nos damos à verdade por medo de sermos "descobertos". Mas a verdade também não se dá a nós quando não há razões para ter esses medos. Continuamos a velá-la, ansiando por um momento de pura contemplação, sem retorno. Ambos entricheirados, nós por excesso de visão, e a verdade por excesso de "cegueira".

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Eros e Tanatos

Bérangère Haegy, Eros-Thanatos



Dois deuses inseparáveis, à imagem destes dois humanos. Talvez não resista à tentação de romantizar, mas há ali, pelo menos, o momento da decisão, e o momento da concretização, o momento em que as duas divindades se unem e se sublimam.

Teoria dos conjuntos



À frente da minha casa há um Centro Sociale. Estes lugares são comuns aqui em Itália, especialmente de Roma para baixo. São basicamente associações culturais que desenvolvem actividades como edição independente de livros, discussões ou concertos. Alguns, como este, têm também espaços para actividades desportivas (futebol, ginástica, aulas de capoeira, ginásio). A maior parte dos seus utilizadores são jovens, mas também há os menos jovens, e, também, estas associações desempenham um papel muito importante na dinamização dos bairros periféricos onde por norma se inserem.
Tudo isto enrolado e recheado de política, como está bom de ver. É um reduto para esquerdistas em geral, comunistas em particular.
Recentemente, passei por lá, para almoçar (excelente pasta e não só, a preços simbólicos!), a primeira vez fui sozinho e na segunda fui com um grupo de recém-conhecidos. Nas duas visitas foi possível observar diferenças que se apresentam quando o ambiente "primário" onde me encontrava foi diferente (o caso em que fui sozinho / o caso em que fui acompanhado) enquanto o ambiente secundário se manteve (o centro social, e respectiva comunidade). Assim, quando fui sozinho senti-me imediatamente olhado de lado, suspeito e provavelmente tido como ameaçador à congeminação secreta de uma qualquer inútil demonstração que por lá se organizava (discutiam-se layouts de panfletos, slogans e lutava-se por lideranças). Na minha anonimidade, nem sequer denunciadamente estrangeiro e absolutamente desconhecido, e no meio de tal reunião, comi à pressa as orecchiette e fui-me embora dali, maldizendo esta mania da subversão, e ainda mais convencido da cegueira e da auto-alienação a que estes grupinhos se prosternam.
Mas esta dificuldade em um grupo aceitar um estranho que ainda por cima parece estranho é muito compreensível. Afinal, qualquer grupo depende da sua identidade e a desconfiança em relação ao estranho é essencial para manter e ir preservando essa mesma identidade. Emocionalmente, marcou-me negativamente, mas não tanto que racionalmente não se possa aceitar tal comportamento.
Já quando fui com os meus novos amiguinhos, fiquei bem mais perturbado pela forma como as pessoas da minha mesa, todos eles estudantes de doutoramento em áreas científicas, não conseguem perceber, ter a sensibilidade, capacidade de adaptação e, finalmente, respeito, pelo ambiente e pelo lugar onde estão. Para além de toda a fantochada típica de cortejamentos com a subtileza de um terramoto, coisas de quem passa a vida fechado em laboratórios a mexer em ratinhos, foram (fomos, enquanto grupo) incapazes de perceber os valores que se esperam sejam partilhados por todos os que entram naquele espaço, que justamente pretende ser de partilha e entreajuda, onde os cozinheiros são as mesmas pessoas que chegam às mesas a perguntar se temos mortalhas, em que quando as pessoas se levantam pegam nos pratos e nos talheres e levam-nos para dentro. No meu grupo ninguém o fez, e as pessoas basicamente usaram o lugar como se de um restaurante se tratasse.
É um espaço aberto, no sentido em que qualquer um pode entrar. É politizado, sim senhor, mas a política nada tem a ver com o respeito em relação ao outro, e principalmente ao outro que nos acolhe e que cozinha para nós (os preços são, realmente, muito baixos, demasiado baixos para que haja um lucro minimamente significativo). Esta falta de sensibilidade é-me desconfortável, e significa falta de atenção para com os outros. Aquilo não é um restaurante, não se pode utilizar como um. É um espaço de difusão de cultura com cujas bases podemos ou não concordar, mas é um espaço estruturado por uma certa humildade do oferecer. E é preciso ter olhos que vejam isso, e por tantas razões importantes; para se promover a própria aceitação e consequente possibilidade de bem-estar, de evolução e aprendizagem, por exemplo, ou para se ter a minha simpatia.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Untitled (No.4) [1964], Mark Rothko

E agora, que fazer? Sentar-se à secretária, andar aqui e ali a viver só em mim. É preciso sempre avançar, partir, deixar. Ler, escrever, comentar, conhecer. Eu preciso, ao invés, do esvaziamento, do nada interior tendencial, desejado e inalcançável. Não há para mim nenhum motor que não tenha marcha reversível.
O adiante que se reveza, deixemos o tempo negligenciado, e atenhamo-nos ao possível.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007



Eis a cidade na qual me reencontro. Assim, na sua indiferença que não é prepotente mas simplesmente apresentada, ela recolhe-me nas suas nuvens de poluição e nas suas multidões. Que com ela me re-encontro, tal e qual, porque quando a deixei, aqui fiquei alhures-adormecido, e agora me retomo, como se fosse um encore de um concerto não percebido.

sábado, 23 de junho de 2007

Pepe





Terás tido uma má noite, como que uma justiça incapaz de equilibrar-se com os anos de alegria, de saltos, de atenção, de carinho. Dezasseis anos, mais de metade da minha vida, e tu sempre ali. Querias a minha atenção e eu a tua. E fomos amigos. É isso que és e serás para mim: a verdadeira amizade.
Agora, mais um fim de semana em que fico em casa. Mas tu já não estás. Ainda existes nos pequenos gestos da minha distracção. Fechei a porta hoje à noite para não saíres da cozinha.
Assalta-me durante o dia a lembrança em dar-te comida.
Evito olhar o canto onde tinhas a cama. Não quero ver que não estás.
Quando abria a janela um pouco mais, para que o sol batesse no chão, e tu procurasses aquele calor para te pores a roer as unhas ao meu lado…
Quando viajava e ficava fora muito tempo, chegava e tu reconhecias-me imediatamente, assaltado pela surpresa, e eu consolado porque não me esqueces-te.

As horas e horas em que te passeava, e nós os dois a mudar-mos. Cresci e tornei-me consciente sempre com a tua companhia. Tu dormias e ficavas à espera que eu não te fosse acordar. Estavas lá, simplesmente. Eras simples, existias.
E continuarás sempre, para mim, como o exemplo perfeito da amizade e da lealdade.
Paz, porque em ti há alma, e em mim memória.




nostalgia de um não-passado







Vivemos num mundo habitado. A terra, uma praia virgem, uma paisagem intocada, são tudo quimeras de um pensamento pulsante tentando antecipar-se na maior radicalidade, isto é, tentando habitar um espaço ante-humano. Há toda uma anterioridade para sempre intocável, que não poderemos abraçar, há todo um mundo que se dispôs antes de nós, ao qual chegámos depois, e que continuamos, que a ele continuamos. Parte de si somos nós, e cada um de nós um corpo em transição num lugar transformante, mas com o apelo forte da sua originalidade. A Natureza viva mas inconsciente, esse mar antes do mar com que o nomear, o primitivo que chega à praia e se encontra com o mar-animal pela primeira vez, que tem à sua frente o declive da serra luzindo num dia sem calendário. Onde estiveram estes lugares? O que é o olhar puro de um mundo sem nomes, sem geografias, onde a maravilha se exalta apenas com a sua força interior própria, e não com o peso do seu significado?

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Rembrandt, Filósofo em meditação





Ser o que se é


A capacidade que temos em interrogar é tão grande, e pode descobrir-se ininterrupta, e radical. Muito do que é a filosofia está aqui. É o espanto que desce sobre nós próprios, que nos propicia a continuar as interrogações. E este ímpeto gerado ganha asas, move-se, cinetiza-se, até começarmos a tecer considerações não já apenas sobre nós, mas sobre o mundo.
Depois tenta-se universalizar, a partir da razão, bramindo espadas contra as ideias "feitas" mas não totalmente exploradas pelo pensamento. Pensa-se no que é. Surgem dúvidas sobre o que é. Pensa-se o Ser e pensa-se se podemos pensá-lo. Assomando o fantasma da reclusão, abrem-se também as portas da mais genuína liberdade. Tornamo-nos senhores porque duvidamos, porque existe uma quase indizível certeza íntima da incerteza. Aí, estamos no meio da História, porque dela somos intérpretes. Porque se sente que a nossa mente é um decifrador mais ou menos caótico para o curso dos acontecimentos. E então há um autismo que reclama o seu espaço, que não quer ouvir e não ouve, porque o corpo se convence que há um curso pessoal a seguir, um ensinamento que só a nós próprios podemos dar.
Apoderamo-nos assim do mundo que já era nosso. Só que onde antes havia aquele espaço de silêncio que não se fazia mesmo ouvir, por mais que gritasse, e onde habitávamos com a inocência em riste de um soldadinho de chumbo, agora há uma multiplicação eterna de elementos a clamar a sua expressividade, há um mundo a precisar de organização, uma organização consequente e eloquente e magistral. Enquanto filósofo, nenhum homem se basta. A torrente que o leva é onde ele tem de aprender a nadar.

sábado, 16 de junho de 2007

Das formas de passar uma tarde de chuva:



sexta-feira, 15 de junho de 2007





Tenho sempre a tentação de escrever sobre um jogo de Portugal como este de anteontem frente à Holanda. De dizer mal, de desancar, de questionar o porquê de um "Amoreirinha" ou mesmo de um "Couceiro".

No primeiro jogo "era o primeiro", e contra Holanda foi "o árbitro". Não há uma culpa que se assuma? Não há um jogador (por exemplo o Manuel da Costa, que aprendeu português a passar férias em Cucujães) que diga que a culpa foi do treinador, de si próprio, do João Pereira? Que diga que "não conseguimos articular o nosso jogo e sacudir a pressão a meio-campo?"

Não, a culpa transfere-se para uma circunstância: o "primeiro jogo" ou para um elemento exterior: "o árbitro".

Agora, uma coisa salta à vista. O guarda-redes holandês chama-se Vermeer e os comentadores da TVI, surpreendentemente, não disseram um comentário do tipo: "Grande desfesa do guarda-redes que tem o mesmo nome do pintor do séc. XVII, e que inspirou um filme no qual um director de fotografia português ia ganhando um óscar!"

Outra coisa salta à vista: esta informação do site zerozero que diz que Vermeer é o "12º que menos tempo precisa para marcar na Euro U21 2007. Um golo em cada 0 Minutos."



Uma...pérola.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

white stripes


Afinal não falo nada dos Smashing Pumpkins porque gostei mais destes dois estarolas, que estavam lá, apenas dois, a encher o palco de som, com uma força e vitalidade só ao alcance de quem contacta muito com riscas brancas... E se é possível ser estrela de Rock n´Roll com trinta anos de idade (ou mais) e mexer-se assim e ainda por cima ter uma voz tão estridente e afinada, só pode ser porque se nasceu para aquilo.

É que eu, quando os Smashing faziam aquele encore de 45 minutos só para testar a paciência de Portugal, comecei a sentir as rótulas a darem de si, e fui-me afundando, lentamente, na lama que entretanto se tinha criado pelas gotas saudosistas daquele concerto da praça de touros ao qual não fui e no qual nunca tinha ouvido falar.

sábado, 9 de junho de 2007

1979





Estes malucos vão-me dar música. Ódepois conto.


segunda-feira, 4 de junho de 2007


Cimeira G8. O habitual momento rave dos jovens "explorados". Explorados, mas não pelo "poder económico" ou pelo "capitalismo selvagem". Eles são explorados pela lógica dos "poderes", que faz com que hajam sempre reacções de contra-poder. Só desta forma o poder e a resistência ganham forma e identidade. Não há poder sem resistência nem resistentes (mesmo que queiram, aparentemente, derrubar o poder) sem esse poder.
Tomássemos todos consciência destas coisas pá, e havia de ser bonito (mas também um bocado para o impossível).

quinta-feira, 24 de maio de 2007

ser e (bom) tempo


Edward Hopper, Morning Sun

prazer adiado




Ir beber um mau café, a um sítio que se odeia, e sair de lá com um gosto amargo-açúcar na boca. Tudo só para ir beber café.

Representar na vida um qualquer personagem, receber as vaias dos outros, e ter dificuldades em largar a máscara.
Tudo só para ir vivendo.

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